Valor Econômico | Gustavo Buiatti e Juliana de Freitas
Nos últimos dias vimos um intenso debate entre investidores da geração distribuída (GD), pessoas físicas ou empresas interessadas em gerar sua própria energia para se blindar dos elevados e sucessivos reajustes tarifários, e representantes das distribuidoras de energia.
A GD é uma parte importante da transição energética que vem acontecendo em todo o mundo, junto com a digitalização e a descarbonização. Através da GD consumidores passam também a gerar sua própria energia, sendo chamados de “prosumidores”.
Enquanto cria oportunidades, o aumento da participação da GD impõe novos desafios para as distribuidoras, para o operador do sistema e para o regulador. O modo como os agentes promoverão tal transição será determinante para os impactos dessa expansão.
Se por um lado a expansão da GD pode trazer benefícios, tais como a redução da perda de potência real e reativa, por outro pode aumentar a complexidade operativa e os próprios custos de distribuição.
Uma forma de incentivo à GD tem sido através do chamado “net metering”, que consiste em um mecanismo de compensação onde o consumidor gera energia e injeta o excedente na rede, caso haja, para uso posterior.
Diversos países, e alguns Estados dos EUA, têm políticas de “net metering”. Outra política é através de tarifas-prêmio, em países que a energia gerada pela GD pode ser vendida diretamente. Aqui a venda de energia é proibida para os consumidores. Com isso, o país optou por um regime de compensação, implantado através das REN 482/12 e REN 687/15. De acordo com a regra vigente, a tarifa de energia, composta pelas parcelas de energia, transmissão, distribuição, encargos e impostos é 100% compensada pelos consumidores.
Desde 2012, segundo a ANEEL, foram instalados 368 mil kW em 30.842 conexões, que geram créditos para 43.578 consumidores.
Como no resto do mundo, tal crescimento desperta questionamentos acerca do modelo de “net metering”, principalmente por parte das distribuidoras que o enxergam como ameaça.
Preconizam a existência de um subsídio cruzado, uma vez que os consumidores com GD deixam de pagar os encargos setoriais, e uma parcela dos custos fixos das distribuidoras, que serão rateados por uma base menor de clientes, que por sua vez pagarão mais. Assim, o custo evitado pelos consumidores com GD recairia sobre os consumidores sem GD, o que tem sido denominada pelas distribuidoras como a “espiral da morte”.
Há dois lados com interesses conflitantes. Do lado das distribuidoras interessa a preservação do seu mercado, ameaçado pela atratividade da GD. Do lado da indústria fotovoltaica interessa o aumento do número de instalações. O papel de elaborar políticas energéticas do MME, com apoio da EPE e da Aneel, é buscar o equilíbrio, visando um benefício maior para a sociedade como um todo, num conceito conhecido na economia como “ótimo de Pareto”, onde não é possível melhorar a situação de um agente sem piorar a dos demais.
Quem instala iluminação a LED precisa pagar às distribuidoras pelo “pecado” de consumir menos energia?
No futuro, além do aumento das instalações de GD, o aumento da eficiência das baterias e a redução de seus preços levará mais consumidores com GD a instalar baterias. Estes também passarão a usar carros elétricos, carregados em suas casas. Com mais consumidores gerando e armazenando sua própria energia, a previsão da carga, responsabilidade das distribuidoras, torna-se cada vez mais complexa, uma vez que essa não conhece o perfil do consumo e da geração. Com isso a qualidade do suprimento aos consumidores pode ser degradada, gerando picos de tensão que podem reduzir a vida útil dos aparelhos eletrônicos ou até a queima dos mesmos.
Os benefícios da GD são, portanto, dependentes da sua expansão planejada. Tal papel caberá à distribuidora, que deverá sinalizar para os clientes onde a GD traz maiores benefícios ao sistema. Ou seja, há oportunidades para as distribuidoras também. Isso acontece com a correta precificação em termos horários e locacionais da GD. Assim, com planejamento integrado, os ativos de GD podem reduzir a necessidade de expansão da infraestrutura da rede e as contas de energia para todos os consumidores, inclusive aqueles sem GD.
Um estudo recente mostra que uma penetração de GD de 20% é segura para adoção da GD fotovoltaica. A penetração atual é irrisória e está longe disso.
A remuneração da distribuidora é justa e necessária, e precisa ser contemplada na alteração da regra do “net metering”. Todavia, é preciso medir quanto e quando a rede está sendo usada.
Ativos de GD podem substituir a necessidade de grandes plantas e de armazenamento. A agregação e coordenação dos micro e minigeradores com baterias forma um conjunto que atua como uma planta virtual, despachável, equivalente a uma planta para atendimento da ponta, desejável para o sistema. Geração e consumo precisam ser monitorados.
Com a baixa penetração da GD, o momento favorece a imposição da instalação de medidores de geração e consumo em tempo real. Isso permitiria avaliar a simultaneidade e o uso real da rede. Com os medidores preparados e o valor mínimo de penetração atingido, a cobrança da TUSD deve ser proporcional ao uso efetivo da rede, em termos de posto horário e de distância entre pontos de injeção e consumo. Na geração junto à carga, simplifica a cobrança e tende a reduzir reclamações dos clientes.
Em uma experiência real, um dos autores instalou medidores de geração e consumo em tempo real em sua residência e constatou que nos últimos 10 meses consumiu na média 57% da energia gerada no seu telhado de forma direta e simultânea. Ou seja, apenas 43% da energia gerada circulou pela rede. Seria justo pagar pelos 57% de consumo evitado da rede? Quem instala iluminação a LED precisa pagar às distribuidoras pelo “pecado” de consumir menos energia?
É possível otimizar os ativos de energia do consumidor, para que a GD resulte em economia para os consumidores, redução de investimentos na rede, melhoria na estabilidade do sistema e geração de energia na ponta quando necessário, melhorando a qualidade e a confiabilidade dos serviços das distribuidoras.
O regulador age bem ouvindo os agentes, promovendo transparência e preocupando-se em manter a estabilidade regulatória, tão importante para a atração dos investidores. Conta com um setor organizado e profissionais altamente qualificados. Já vivemos tempos em que mudanças bruscas tiveram consequências severas para o setor. Façamos com que a experiência não seja uma lanterna na popa, que ilumina o passado, mas que nos orienta para um futuro radiante.
Gustavo Malagoli Buiatti é presidente da ALSOL Energias Renováveis S/A, co-fundador e diretor técnico da ABGD (Associação Brasileira de Geração Distribuída).
Juliana de Moraes Marreco de Freitas, doutora em Planejamento Energético pela UFRJ, é sócia e consultora na Peoplenergy Consulting